27 de junho de 2013

Comer Animais


Diferente do que se possa pensar, esse livro não é um argumento a favor de você parar de comer carne agora, nesse exato momento. "Eating Animals" é mais como uma análise das ligações tão íntimas entre comida e família, comida e amor, comida e sobrevivência. Nos reitera o porquê de nossos pais e avós verem a comida de uma forma tão diferente da nossa. E nos submerge na história do próprio autor, com seus questionamentos sobre o que comer e o que oferecer para sua família - que aumentava com a chegada de seu primeiro filho. 

Porém, as constatações de Jonathan Safran Foer durante seus três anos de pesquisa visitando fazendas dos mais variados tipos, conversando com pessoas da indústria alimentícia e lendo estudos sobre o assunto são de terminar a leitura, no mínimo, enojado com os rumos que a nossa sociedade toma. No mínimo. Para mim, foi muito mais que isso. Eu vou poupar as informações impressionantes, mas falar sobre como elas me afetaram.

“While it is always possible to wake a person who's sleeping, no amount of noise will wake a person who is pretending to be asleep.” 

A primeira vez que eu ouvi falar sobre vegetarianismo foi através de garoto um ano mais velho do que eu, quando eu tinha uns 16 anos. Ele era amigo de outros amigos, e não se destacava nem mais nem menos por isso, era um garoto comum, um pouco tímido, e que por opção não comia carne. Na época eu não entendia direito porque, achava que era por sentir "pena" do sofrimento dos animais.

“Whether we're talking about fish species, pigs, or some other eaten animal, is such suffering the most important thing in the world? Obviously not. But that's not the question. Is it more important that sushi, bacon, or chicken nuggets? That's the question.”

De qualquer forma, achava a opinião dele interessante, mas nunca tinha procurado saber mais sobre o assunto. Nunca tinha parado para pensar na ligação entre a comida dos nossos pratos e os animais que eu costumava me importar tanto quando criança. Nunca me foi dada a alternativa de vegetarianismo, visto que desde a escola aprendemos a pirâmide alimentar, suas porções de carboidratos, proteínas animais e gorduras como a melhor alternativa para nossa saúde e desenvolvimento. Conhecia algumas pessoas que não comiam certos tipos de carne, mas sempre por motivos de alergia ou de não gostarem do sabor.

A verdade é que ideologia é algo que você mesmo tem que buscar.

“Humans are the only animals that have children on purpose, keep in touch (or don't), care about birthdays, waste and lose time, brush their teeth, feel nostalgia, scrub stains, have religions and political parties and laws, wear keepsakes, apologize years after an offense, whisper, fear themselves, interpret dreams, hide their genitalia, shave, bury time capsules, and can choose not to eat something for reasons of conscience. The justifications for eating animals and for not eating them are often identical: we are not them.” 

Quem me apresentou o vegetarianismo foi a Kori, no início de 2007. Um filme: "Terráqueos" (2005). Como o próprio Foer diz, quando pensamos em um filme sobre carne já sabemos que ele será assustador e torturante, então por que nunca refletimos sobre o quão estranho é sabermos disso mas continuarmos pensando "ah, não quero ver, é demais pra mim"? Eu vi. E não havia como ignorar tudo o que me havia sido exposto. Finalmente eu fiz o link entre meu prato e os animais. Finalmente me mostraram que não havia só uma maneira de se alimentar bem. E a minha consciência não me permitiu fechar os olhos para isso.

“Perhaps in the back of our minds we already understand, without all the science I've discussed, that something terribly wrong is happening. Our sustenance now comes from misery. We know that if someone offers to show us a film on how our meat is produced, it will be a horror film. We perhaps know more than we care to admit, keeping it down in the dark places of our memory-- disavowed. When we eat factory-farmed meat we live, literally, on tortured flesh. Increasingly, that tortured flesh is becoming our own.” 

Minha transição foi lenta. Fui cortando o que começou a me dar nojo, e as coisas que eu quase nunca comia. Parei com as carnes mais gordurosas, salames, salsichas. Carne vermelha. Hamburgueres. Frango. Eu me lembro do último churrasco que eu comi, durante uma viagem, o gosto me descendo com culpa. A matéria pesando no estômago. E não era porque o sabor era ruim.

Eu cuspi o pedaço de salame que tentei comer alguns meses depois.

Peixe foi o que mais demorei para abandonar. Algumas pessoas insistem em dizer "mas peixe não é animal, não pensa e não sente nada direito!", o que eu sempre soube que era uma mentira. Mas o sabor e o conforto ainda me impediam. O hábito e as incontáveis situações especiais que fazem parte da minha memória afetiva associada a esse tipo de prato. Comida japonesa.

No meu 19º aniversário, veio a resolução. "Eu não vou mais comer peixe."

“Imagine being served a plate of sushi. But this plate also holds all of the animals that were killed for your serving of sushi. The plate might have to be five feet across.” 

Não foi porque eu não gostava do sabor. Não foi porque eu sou sentimentalista e deveria criar uma casca para formar melhor minhas opiniões. Não foi porque eu tenho que aceitar "as coisas como elas são." Foi porque eu não conseguia mais me sentir hipócrita fechando os meus olhos para o sofrimento, para uma indústria desnecessária, movida pelo hábito e pelo prazer somente. Eu me tornei vegetariana.

“Just how destructive does a culinary preference have to be before we decide to eat something else? If contributing to the suffering of billions of animals that live miserable lives and (quite often) die in horrific ways isn't motivating, what would be? If being the number one contributor to the most serious threat facing the planet (global warming) isn't enough, what is? And if you are tempted to put off these questions of conscience, to say not now, then when?” 

Quatro anos depois, eu carrego minhas histórias. Carrego as conversas boas e produtivas, as pessoas que disseram que admiram esse estilo de vida e as pessoas que vem me contar, alegres, que estão diminuindo a quantidade de carne que comem ou mesmo parando. Carrego os amigos que eram vegetarianos e no caminho deixaram de ser, quaisquer que sejam os motivos. Carrego os que se mantêm ainda convictos. E os que nunca foram, mas sempre me respeitaram.

Mas carrego também as piadas tentando me diminuir. As conversas com o intuito de me atacar, as provocações para encontrar falhas nos meus argumentos, como se eu fosse o retrato que o inconsciente coletivo tem dos vegetarianos: hippies alienados, que sofrem com o ciclo natural da vida e que no momento em que te virem com um bife na boca vão gritar "ASSASSINO!" As pessoas que acreditam que você só pode ser saudável comendo carne. E as pessoas que não acreditam nem na sua capacidade de ter uma convicção: "Ah, daqui a pouco você desiste."

Não desisti, mas as vezes deu vontade.

E não foi pela vontade de comer um frango à milanesa. Foi pela pressão ridiculamente grande por conta de um assunto tão pequeno. Pelo que as pessoas assumem sem nunca terem pesquisado. Por ter que ser tratada como diferente quando eu não sou diferente. Pelo absurdo de um restaurante que não tem qualquer coisa sem carne. Por cada vez que eu tenho que sorrir quando me dizem que eu to "precisando comer um bife". Por cada vez que as pessoas dizem que preferem não saber como foi preparado o que estão comendo, ou mesmo o que é que estão comendo. Como eu sou sempre julgada como emocional, quando são os outros que nunca colocam suas vontades em segundo plano na hora de pedir um hamburguer porque bateu a vontade, como o Foer exemplifica tão bem:

“Very often, those who express concern about (or even an interest in) the conditions in which farmed animals are raised are disregarded as sentimentalists. But it’s worth taking a step back to ask who is the sentimentalist and who is the realist. 
Is caring to know about the treatment of farmed animals a confrontation with the facts about the animals and ourselves or an avoidance of them? Is arguing that a sentiment of compassion should be given greater value than a cheaper burger (or having a burger at all) an expression of emotion and impulse or an engagement with reality and our moral intuitions? Two friends are ordering lunch. One says, “I’m in the mood for a burger," and orders it. The other says, “I’m in the mood for a burger," but remembers that there are things more important to him than what he is in the mood for at any given moment, and orders something else. Who is the sentimentalist?”

Nesse último ano eu percebi que todo o meu ideal sobre vegetarianismo minguava. Eu aprendi que existem mais razões além da simples displicência para as pessoas não se tornarem vegetarianas. Hábito. Pressão da família. Medo. Mas o convívio com essas pessoas me fez perceber que eu não ficava mais empolgada em expor meu ponto de vista sobre o assunto, e sim que eu soltava, tímida, quase inaudível, aquele devastador "É que eu não como carne", esperando todo o tipo de escrutínio. O meu vegetarianismo existia mais por hábito do que por ativismo, mesmo que eu nunca tenha desistido, e sim sempre buscado melhorar. Eu cheguei ao ponto de arquitetar responder "Porque eu não gosto", quando me perguntassem porque que eu fiz essa escolha, poupando os comentários desagradáveis que eu não suportava ouvir.

“I can't count the times that upon telling someone I am vegetarian, he or she responded by pointing out an inconsistency in my lifestyle or trying to find a flaw in an argument I never made. (I have often felt that my vegetarianism matters more to such people than it does to me).” 

Você não gostar de uma coisa é sempre melhor aceito do que você gostar e se abster por outras razões.

“I love sushi, I love fried chicken, I love steak. But there is a limit to my love.”

Acho que as pessoas geralmente encaram esse fato como se quem escolheu se abster quisesse se passar por superior. "Oh, veja como eu sou uma pessoa melhor do que você, eu não contribuo com essa indústria maléfica. Agora arda na culpa pelos porquinhos mortos para que você pudesse comer essa sua mortadela." Quando não, não é NADA disso.

É totalmente o contrário. Não quero me fazer de vítima, e para não parecer injusta, afirmo que existem, sim, os tipos que se acham superiores por isso. São esses tipos que provavelmente vão berrar "ASSASSINO!" ou tentar te convencer a virar vegetariano enquanto fuzilam seus nuggets. Mas essas pessoas não contemplam a realidade do vegetarianismo. Vivem em ideais feitos de nuvens, com os pés bem longe de criar caminhos concretos através da compaixão pelos outros, e não da opressão sobre o que acham errado.

Ser vegetariano é ser muito mais vulnerável. 

“What we forget about animals we begin to forget about ourselves.”

É prestar atenção nos rótulos de praticamente todas as coisas que você for comer. É estar constantemente descobrindo novos alimentos. É confiar. É desistir de ter tudo. É ter que dar explicações ou resistir enquanto as pessoas te acham um ser estranho.

Desde que eu me comprometi a ser vegetariana e não me alimentar propositalmente e conscientemente de animais, eu ainda passei um bom tempo sem conhecer o que era corante carmim de cochonilha. A nossa ausência de conexão com os ingredientes do que comemos me fez passar mais um bom tempo sem saber que jujubas e afins eram feitas de gelatina. Mês passado eu descobri que algumas receitas de bolinha de queijo, o único salgadinho das festinhas infantis que me restava, são feitas com caldo de galinha. 

Ser vegetariano é também se dar o benefício da dúvida, já que na sociedade em que vivemos é praticamente impossível, a não ser que nós mesmos preparemos toda a nossa comida, garantir que não estamos comendo animais ou pedaços de animais, ainda que em quantidades mínimas.

Acredito que esse estilo de vida é mais importante no poder da conscientização que podemos exercer, do que nos infelizes pedacinhos de animais que, sem querer, comemos (e as vezes nunca descobriremos). Não que não deva haver a escolha consciente e constante por produtos sem carne. Mas saber que a beleza está no que praticamos, que nossos valores são importantes, que moldam a forma de pensar dos nossos parentes, filhos e amigos. Que eles terão à disposição as opções que nós tivemos tão duramente que escavar para aprender, porque ninguém nos ensinou.

“Choosing leaf or flesh, factory farm or family farm, does not in itself change the world, but teaching ourselves, our children, our local communities, and our nation to choose conscience over ease can.” 

Esse livro me fez parar algumas vezes para chorar de incredulidade. Me fez ficar horas pensando se não comer carne é realmente a melhor opção (e eu ainda acho que é). Me embasou no argumento de que não acredito que o mundo inteiro vá ser vegetariano tão cedo, mas que nós, que temos condições para isso, já ajudaríamos bastante a nós mesmos e ao mundo ainda que só diminuíssemos a quantidade de carne consumida. Que enquanto não existe estrutura social (e eu falo isso principalmente pela pressão que família e amigos exercem) para todos serem vegetarianos sem mais problemas, a busca pela criação de animais buscando o bem estar durante toda a vida, e não só durante o abate, é uma medida que eu considero válida. Não para sempre, mas enquanto for necessária. Acredito que luxos tem sua importância, mas não os que fazem outros sofrer tão cruelmente. Meu argumento pode entrar em inúmeras discussões sobre capitalismo, necessidade, prazer, e eu poderia continuar falando infinitamente. Mas quero focar no que me tocou, por agora. 

Esse livro não só me lembrou da importância da minha escolha, como também da satisfação que ela me traz. E me inspirou tanto que não consigo mais fechar os olhos também para o mal que causo consumindo ovos e laticínios. Não sei dizer quando vou adotar uma dieta totalmente vegana, mas com orgulho digo que essa leitura foi um passo importante para cortar os excessos sempre que eu puder. 

“Life overflows with imperfections, but some matter more than others”

Não importa quantas piadas ou desmerecimentos façam sobre vegetarianismo, eu o escolhi com toda a certeza que tenho dentro de mim. Eu escolho.

2 comentários:

  1. *__*

    que texto mais lindo.
    tão bom ver q a gente tá nisso ao mesmo tempo.

    são tantos níveis, do súbito MEAT IS MURDER até o quase se esquecer pq vc não come.

    mas acho que é importante lembrar, reforçar. como diz minha gatinha, só se questionando é que vc vê a força das suas ideias.

    e eu vou continuar botando elas em prática, até meu prato não ter mais nada animal.
    e não importa que não exista nada 100% vegan, quanto mais vegan, melhor. quanto menos crueldade, melhor. e aí se expande pra trabalho escravo, condições de trabalho e etc

    pensar na complexitude disso pode desanimar, mas só de pensar que é uma questão que começa pelo seu prato, acho que assusta tb

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  2. né?

    também acho, chega em um nível que a complexidade é tão bizarra que parece que você não pode fazer nada sem ter que viver num exílio fora da sociedade. mas aos poucos vamos fazendo o que a gente pode, sempre melhorando :)

    e obrigada <3

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