11 de agosto de 2013

Passos

“The father’s job is to teach his children how to be warriors, to give them the confidence to get on the horse to ride into battle when it’s necessary to do so. If you don’t get that from your father, you have to teach yourself.” - Cheryl Strayed, "Wild"

A primeira lembrança que eu tenho do meu pai me leva de volta aos meus três anos de idade, onde dizem que poucas memórias sobrevivem. Já é de noite e eu me encontro sentada no pescoço dele, as mãos firmes no cabelo escuro e oleoso para não cair de lá de cima. Nós caminhamos pelo que provavelmente era uma distância bem curta até um mercado, onde ele me compra um pirulito.

Alguém que me atravessava a noite. Esse era meu pai.

Conforme fui crescendo, esse papel continuou na forma da expectativa que eu e minha irmã tínhamos para a hora em que ele chegaria do trabalho. Como minha mãe trabalhava em casa, a chegada dele significava a peça que faltava para que a família ficasse completa, dando lugar ao jantar e à preparação para ir dormir. A travessia da noite. Meu pai passou nossa infância inteira lendo os mais variados livros e inventando histórias para essa hora. Passamos por O Mundo de Sofia e Harry Potter, e ajudamos a criar uma história onde uma minhoca visitava o Corcovado e era acompanhada pelas mais absurdas músicas, também produtos originais de nossa imaginação.

Nessa passagem do dia para a noite, a transição do real para o sonho, do conhecido para o desconhecido, assim como naquela caminhada escura há tantos anos atrás, ele sempre esteve lá para me amparar. Porque a noite oferecia os perigos dos meus pesadelos e, pior ainda, os perigos do mundo real. Era à noite que surgiam as brigas entre ele e minha mãe que me faziam chorar pela madrugada.


Nunca fui uma criança que dormia fácil. Lembro que passava horas me revirando na cama, sem conseguir pregar os olhos, e sempre acordava muito cedo, às vezes antes dos meus pais. Eu sentia que devia ficar sempre alerta, já que meu choro geralmente fazia meus pais pararem com a briga, ou ao menos a pararem com os gritos. Eu podia não entender nada sobre o que eles estavam discutindo, mas eu já sentia, desde bem pequena, que aquilo não era algo que eu deveria ignorar.

Seguindo a expectativa do imaginário da nossa sociedade, meu pai cumpria o papel do parente severo, rígido, que não gostava que assistíssemos televisão durante o jantar. Mas era também o lado aventureiro e ativo, que participava das nossas brincadeiras na piscina e fazia trilhas pelos parques. Os finais de semana significavam que ele estaria do nosso lado durante o dia inteiro, onde podíamos explorar ao máximo sua atenção e admiração, não melhores nem piores, mas diferentes das de minha mãe, a quem tínhamos disponível o tempo inteiro.

Meu pai era a figura de autoridade na casa. A figura admirada, que fazia a barba todas as manhãs, saía de terno e gravata, trabalhava em um escritório importante que eu algumas vezes visitava. Fazia triathlon, maratonas e competições de natação, falava inglês, francês e até italiano. Era quem trazia Barbies de suas viagens e quem saía de noite só para comprar a fita de O Rei Leão que eu tanto queria. Quem inventava apelidos e nos carregava no colo. Eu achava que não havia como ser melhor.

Os anos felizes, onde eu realmente sentia que tinha uma família sólida, segura, foram poucos. O ensino católico que meus pais me deram, misturado à inocência infantil, me fazia acreditar que um casamento não deveria ser desfeito, que pais se amam, que amam seus filhos, que eles serão sempre protegidos. Quanto me dei conta do que de fato significava uma família, a minha já estava em ruínas. A separação dos meus pais recaiu sobre mim muito mais como o abandono do meu pai.

Subitamente, eu, meus irmãos e minha mãe nos vimos morando no Rio de Janeiro, porque a família morava próxima e poderia ajudar e porque, na época, era muito mais barato que São Paulo. Meu pai continuou sua vida, passando para nos visitar de 15 em 15 dias, e contribuindo com o que parece ser o maior dom dos pais separados: o dinheiro.

Do alto da minha ignorância de quem sempre teve de tudo, me vi reclamando do apartamento pequeno e das inconveniências que eu agora deveria enfrentar, embora eu estivesse aliviada por não precisar mais aguentar os gritos e os passeios em família que, há muito tempo, já não chegavam ao fim pacificamente.

Mas as coisas não eram tão ruins. Apesar da distância, meu pai parecia se esforçar para cuidar de nós. Nos levou para viajar algumas vezes, dava presentes, íamos ao cinema. Ele começou a namorar nossa atual madrasta, que também mora no Rio. Conseguiu transferir o emprego para cá. Se mudou para o apartamento dela, que fica a três quarteirões de distância do nosso. Mas ao passo que ele ficava cada vez mais próximo da nossa vida, cada dia que se passava ele ficava mais distante de nós. E eu sempre falhei em perceber isso.

Em uma consulta com a minha antiga terapeuta, ela me disse: "Já reparou em como ele não faz o papel de pai?" Durante os mais de cinco anos que ele mora praticamente ao meu lado, conto nos dedos as vezes em que visitei a casa dele, ou ele a minha. O número diminui ao contar as vezes em que nos vimos à toa, sem ser nos típicos almoços de final de semana. Ele nunca se ofereceu para nos levar ou buscar em casas de amigos, festinhas, ou outras coisas do tipo. Pedir acontecia, mas sempre sob uma inquietante hesitação e comentários como "Papai tem que ver se vai dar", mesmo que sempre desse, no final.

Esse comportamento, como se ele quisesse mostrar que não está sempre disponível para nós, me é tão estranho. Meu pai mudou muito. Tudo bem, todos mudamos, mas ele está cada dia mais parecido com o próprio pai. Meu avô. Que morreu e eu, com muito esforço, tentei me lembrar de alguma memória significativa que tive com ele. O mais próximo que lembrei foi dele pedindo insistentemente para eu, criança, parar de brincar com um cesto de papel enorme, que ele chamava de "balaio", e que eu, em êxtase por tal recipiente de nome tão engraçado, sempre cismava em tirar as duas ou três bolinhas de papel que estavam no fundo para imediatamente colocá-lo sobre minha cabeça. Essa é a única memória de interação que eu tenho com o meu avô. Um senhor pedindo para uma criança se comportar como adulta.

E é isso que eu sinto meu pai se transformando. Cada vez mais distante, mais severo, mais rígido. Cada vez mais a pessoa a quem não falta nada, mas que não abre a mão para ajudar quando um filho precisa. A pessoa que ignora ou nem quer saber ou não se preocupa em informar sequer para onde vai viajar (e é claro que ele nunca mais nos levou). Não estou culpando ou achando suas escolhas incompreensíveis, só sinto que não me parece algo que uma pessoa a quem eu chamo de Pai faria. 

Eu sinto que ele se esvaiu da minha vida há tanto tempo que eu não sei nem mais processar o que é injusto ou não em nossa relação. Fica só o vazio, uma linha estreita e reta, cheia de proibições e assuntos que nunca são mencionados, onde as emoções são guardadas e uma força tão poderosa quanto a gravidade tenta me fazer continuar nessa direção. Mas eu, com meus passos pequenos de quem não teve quem me ensinasse a entrar em batalha, tento ultrapassar com confiança. A confiança que sou eu quem me ensino, e que é mais poderosa do que qualquer história que ele possa querer que eu me enquadre.

Essa é minha história de dia dos pais. E a sua?

3 comentários:

  1. Meu pai foi meu melhor amigo até meus 13 anos.

    Aos 13 (lembrei do filme agora, rs), depois de ler alguns trechos de Nietzsche e Schopenhauer, mudar para uma escola com grau de exigência muito maior e conhecer a garota que mais amei na vida (coincidentemente, no ano em que ela conheceu o cara que, aparentemente, é o homem da vida dela) e ter sofrido muito por ter só a amizade dela, tive uma crise depressiva.

    Comecei a questionar Deus a todo o tempo (o que gerava intermináveis debates entre nós dois) e passei alguns meses sem conseguir sorrir.

    Nessa época, em que me era tão normal pensar em me matar (acho que sempre foi, na verdade) e na qual sentia como se o peso do mundo estivesse sobre minhas costas, além de ter dispensado uma oportunidade de morar nos EUA, o que gerou certo sentimento de culpa (que me vem, até hoje, ocasionalmente), eu consegui superar meu orgulho (que era bem grande) e pedir ajuda, pois estava desesperado. Pedi, inúmeras vezes, para que meus pais me levassem a um psicólogo/terapeuta/analista, mas aí surgiu o orgulho do meu pai, que não conseguia admitir que tinha um filho frágil e sensível a ponto de precisar ir a um terapeuta.

    Ele chegou a me dizer: "O que você precisa é jogar bola!" Não lembro se ele chegou a dizer que eu precisava pegar mulher também, mas é possível e provável.

    Com muito esforço e sofrendo muito, consegui passar de ano (nos 2 sentidos) e só consegui que me levassem numa psicóloga 2 anos depois, após sofrer intenso bullying na escola (aliás, só fui a uma sessão, pois não me sentia seguro, já que a psicóloga era amiga dos meus pais).

    Continuo me dando bem com ele, tenho muito mais afinidade com ele do que com minha mãe (que costumava ser a maior vítima das minhas críticas e que também é muito responsável por muitas dificuldades mentais que tenho ainda hoje), mas hoje percebo que ele sempre serviu como bom amigo, mas não como pai. Minha mãe, apesar de tudo, tentou assumir seu papel como mãe (com milhões de falhas, obviamente, o que se esperaria de um ser humano, acho compreensível, atualmente), mas ele sempre fez uma função mais distante, do cara divertido, do amigo, do que brincava, mas também quem dava o esporro final, aquele do "vou contar pro seu pai quando ele chegar em casa". Mas ele tinha uma função mais cool, me mimava um pouco até, o que faria até hoje, não fosse o fato de eu trabalhar.

    Enfim, atualmente, percebi o quanto ele esteve distante e foi bom amigo, não bom pai (acredito, sim, que seja diferente), pois não teve capacidade de ajudar seu filho quando ele mais precisou.

    Tudo bem, "abracei meus demônios", faço poesia desde então, componho, toco guitarra, não acho que teria inspiração se minha trajetória de vida não tivesse sido tão escrota, tão cheia de transtornos, mas, obviamente, abriria mão de tudo isso pra ser uma pessoa mais feliz. O que, obviamente, não sou e nunca fui.

    Isso resume um pouco da minha história com meu pai.

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  2. vejamos, nada que você não conheça né

    1) a figura severa mas que também mimava
    2) o alcoolatra que temia e chegava a odiar
    3) o cara que chegou no fundo do poço e tudo que eu queria era que tivesse sido o contrário, que ele é que tivesse morrido no lugar da minha mãe
    4) as brigas que chegaram à violência física
    5) a reaproximação na minha adolescência: primeiro financeiramente, depois, como pai
    6) os surtos que voltávamos as brigas, meus problemas de final de adolescência
    7) a redenção: todo o apoio, piadas, conversas. até algum carinho físico.
    8) como estamos hoje: sem falar do passado, visitas ocasionais, telefonemas, mas sinto que muito amor, mas do nosso jeito, ou seja: sem muito contato ou "eu te amo".

    acho que falei uma vez pra ele só e provavelmente vou me arrepender disso qdo ele se for, mas ainda me trava, não que não seja verdade, só tem uma espécie de... vergonha. talvez pela carga emocional e por aceitar um passado que ainda não superei por completo.

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    1. e, engraçado, uma imagem que tenho dele é eu, criança na canguta dele, me sentindo feliz, mas com medo, porque a qualquer hora, como ele tava bêbado, poderia me deixar cair

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