3 de setembro de 2013

Se eu fosse livre dos padrões de beleza

Se eu fosse livre dos padrões de beleza como aparentemente virou tendência afirmar por aí, eu não teria cicatrizes tão profundas.

Se eu fosse realmente livre, como eu gostaria muito de ser, eu não teria saído do oftalmologista aos 9 anos de idade chorando, sob o diagnóstico de ter que usar óculos todos os dias, o dia inteiro. E não era porque óculos é um aparato incômodo e que me impediria de viver normalmente, e sim porque, aos 9 anos, eu já sabia o que era considerado desejável e o que não, em uma mulher.

Se eu fosse realmente livre talvez tivesse acreditado mais em mim, e não desse ouvidos ao pensamento real que eu tinha de que meninas ou eram bonitas de rosto, ou de corpo e, se fossem dos dois, eram burras, com certeza. Não teria passado minha infância toda ao mesmo tempo curiosa e culpada, admirando os outdoors da Playboy enquanto julgava essas mulheres como "prostitutas, vadias". Não teria passado minha adolescência culpada por agora abrigar em um corpo que despertava o desejo, tanto o meu quanto o dos outros, em que o primeiro era condenável, enquanto o segundo era opressivo nas formas de cantadas, piadas ou mesmo passadas de mão que eu nunca pedi ou permiti.

Se eu fosse realmente livre, talvez minha mentalidade fosse mais aberta. Talvez eu tivesse me aberto para mais experiências. Eu sempre tentei seguir o que eu realmente queria, mas sempre sofri preconceito por saírem fora do normal. Quem pode dizer que nossas escolhas são todas, todas, totalmente nossas? Que você nunca desistiu de fazer alguma coisa que realmente queria por medo do que as pessoas iam dizer, somente? Eu não posso, definitivamente.

Se eu tivesse me libertado dos padrões, talvez eu não tivesse passado quase cinco anos mantendo um fotolog que praticamente tinha só fotos minhas, recebendo elogios vazios, mas ainda assim elogios, e construindo minha auto-estima com poeira virtual. Talvez eu não tivesse me humilhado tanto por pessoas que só sabiam fazer isso: me elogiar, para depois me mostrarem que mesmo com a suposta beleza, eu não valia nada além. Talvez eu nunca tivesse saído chorando da boate, incrédula com a injustiça da vida que tinha me ensinado que se eu fosse mais bonita do que as concorrentes, meu pretendente ia gostar de mim. Não aconteceu. Muitas e muitas e muitas outras vezes, continuou não acontecendo. Esse é o problema do Mito da Beleza: a gente acha que ele vai nos trazer garantias de qualquer coisa, quando não vai. De nada. Agora, tenta sair com o cabelo oleoso sem nem reparar que ele está oleoso e fingir que não se incomoda com isso. Difícil, né?

Se eu fosse realmente livre, acho que eu não me depilaria. É muito mais prático. Não faria nem a sobrancelha. Quem teria me dito que as sobrancelhas feitas são mais bonitas? Acho que eu também não usaria sutiã. Me importaria menos com o que as pessoas podem pensar da minha aparência. Gostaria do meu reflexo no espelho em qualquer de suas formas: gorda, magra, com cabelo feio, bonito, maquiada ou de pijama. Não perderia meu tempo me arrumando só para os outros não pensarem "meu deus, como ela teve coragem de sair assim."

Se eu fosse realmente livre, não teria perdido tanto tempo pensando que não podia confiar muito em outras mulheres. Julgando sempre a outra de vadia, de exibida, principalmente quando ela faz o que mais ninguém teve coragem de fazer. E nisso, não podemos culpar as mulheres. Algumas, de tanto ouvir ou ver outros exemplos, acreditam mesmo que seu papel é "derrotar as inimigas", vivem de apontar os erros das outras, no fundo acho que não sentem confiança nem em suas próprias mães. É um mundo solitário. Tão transitório.

Se eu fosse realmente livre, já teria me desprendido dos preconceitos que volta e meia me assolam. Dos pensamentos destrutivos sobre mim e sobre os outros, principalmente as outras. De todo o racismo, classismo, machismo, homofobia, transfobia e gordofobia. Tão intrínsecos que as vezes até dói pra admitir na gente. Mas estão ali. Para serem reformulados.

Se eu tivesse esse tão grande desprendimento dos padrões como estão afirmando ser a coisa mais fácil de se ter por aí, eu viria para o trabalho de All Star, afinal, ninguém nunca reclamou quando eu fui, mas eu senti a pressão de que aquilo não era adequado. E não porque é um trabalho em que eu necessito de roupa social ou encontro com grandes diretores. Não. Eu basicamente fico no computador e transito dentro do escritório, no máximo. Mas mesmo assim, são exigidas certas condutas sobre mim, não escritas, mas invisivelmente esperadas. E pesam sobre minhas costas. Dessa forma, acho que eu também venceria meu preconceito de repetir roupa em dias seguidos. Tenho pavor do que vão pensar se perceberem que usei o mesmo conjunto de roupas por mais de um dia. "Não tomou banho?" ou, então, o invasivo "Hmmm, dormiu fora de casa?"

Mas a grande verdade é que nunca basta sermos livres com nós mesmas. Isso só é real até certo ponto. Transpassado, estamos presos numa gaiola ainda maior e ferrenha: a sociedade.

Se ignorar os padrões realmente funcionasse, nem eu, nem minha mãe e nem meu namorado temeríamos toda vez que eu pego um táxi desconhecido. Ou, no caso da minha mãe, toda vez que fico bêbada. Toda vez que preciso andar sozinha muito tarde. Toda vez que vemos as notícias de estupro, assassinato, tortura, abuso, sem mencionar que na maioria dos casos são cometidos por conhecidos das vítimas. Toda vez que passo por um grupo de homens e torço para que eles não me olhem, não me falem, não façam nada, apenas existam como eu existo no momento.

Se ignorar os padrões fosse a solução, ninguém sentiria a vontade de cutucar minha vida e minhas opções o tempo inteiro. Respeitariam que eu ignoro a opressão a que eles dão ouvidos por vontade própria (ué, não é simplesmente fechar os olhos e ignorar os padrões?). Pior, essas pessoas que dizem que "não ligam para os padrões da sociedade" não se preocupariam tanto em divulgar os tais "outros padrões" em que acreditam. Engraçado, né? O clássico "não gosto de política, mas acho que todo político não presta". Ou o "não tenho nada contra homossexuais, mas acho errado gays e lésbicas demonstrando amor enquanto eu posso beijar e abraçar o quanto eu quiser qualquer pessoa do sexo oposto".

Se fechar os olhos para o preconceito e para os estereótipos os diminuíssem, eles já não deveriam existir, de tantas coisas que deixamos passar. Se transitar pela vida como se o sofrimento do outro não importasse a mim fosse a atitude que vai mudar o mundo, aguardo ansiosamente exemplos dela. Do lado contrário, as pessoas que lutaram pelas dores não só suas, mas também dos outros ecoam em histórias que admiramos até hoje. 

É preciso mais. É preciso mais do que "fazer as coisas do jeito que eu gosto e acho certo", mas sem nunca reparar no por quê que você gosta dessa coisa, e não de outra. Claro que fazê-las do seu jeito é o primeiro passo, mas não é o suficiente. É preciso pensar no que que essas coisas e opiniões acarretam. Enquanto são só suas, tudo bem, mas a partir do momento em que você as expõe, fala sobre, divulga, é preciso tomar cuidado para que não sirvam como opressão e julgamento de outras. Se não, perde-se toda a sua tão adorada liberdade. Porque, nesse exato momento, você está cortando a do outro. 

Liberdade não era para ser de todos? Ou só para aqueles que pensam que nem você? Hmmm.


Sob o domínio do mito, a mulher "linda" não sai ganhando. Ninguém mais sai ganhando. Nem a mulher que fica sujeita à contínua adulação por parte de estranhos, nem aquela que se nega qualquer tipo de atenção. Não sai ganhando a mulher que usa uniforme, nem a que tem um traje exclusivo para cada dia do ano. Não sai ganhando quem se esforça para atingir o ápice de um sistema de castas, mas, sim, quem se recusa terminantemente a ficar preso dentro de um sistema desses. Sai ganhando a mulher que se considera linda e que desafia o mundo a se transformar para poder realmente vê-la. Sai ganhando a mulher que se dá, bem como às outras mulheres, a permissão de comer; de despertar interesse sexual; de envelhecer; de usar macacão, uma tiara de pedras falsas, um vestido de Balenciaga, uma estola de segunda mão, ou botas de combate; de se esconder toda ou de sair praticamente nua; de fazer o que bem quiser seguindo a nossa própria estética ou a ignorando. A mulher sai ganhando quando percebe que o que cada mulher faz com o seu próprio corpo — sem coação, sem violência — é exclusivamente da sua conta.
 "O Mito da Beleza" - Naomi Wolf 

Adendo: O Mito da Beleza, da Naomi Wolf, é um livro excelente e válido até hoje em minha opinião, porém, atualmente a autora tem feito publicações controversas sobre feminismo e eu, do que vi, não concordei muito. Mas essa é uma discussão para outra oportunidade.

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