Então eu lembrei que meu colégio era católico. Que a diretora pessoalmente palestrava em nossas salas de aula sobre a importância das meninas não usarem saias muito curtas ou blusas que mostrassem a barriga. Lembrei que o clubinho de meninas que eu ia no sábado ensinava sapateado, artesanato e culinária, mas também propagava sobre a importância da virgindade e de como nós tínhamos que proteger nosso corpo como um diamante, pois ele era algo de valor. A dicotomia santa/puta já começava a aparecer na minha vida por aí.
Pensei em como a sexualidade feminina era sempre um
mistério para mim. Homens pelados via-se na vida real, mostrar o glorificado
órgão era motivo de orgulho até para os menininhos da pré-escola. Nós, meninas,
não. Nunca tinha visto uma mulher pelada até descobrir que isso era
relativamente fácil procurando nos canais de televisão certos. Lembro-me
de como eu e minhas amigas julgávamos toda e qualquer mulher que aparecesse sem
roupa - capas de Playboy em seus outdoors pela cidade principalmente. Dizíamos
sobre como eram absurdas e desrespeitosas, ao mesmo tempo em que olhávamos curiosas,
afinal, o que tinha de tão misterioso em uma mulher?
Do desespero que eu senti quando percebia que os
pelos do meu braço escureciam e se tornavam mais espessos até o momento onde
definitivamente me censuravam por andar sem sutiã, eu me neguei. Como Simone
de Beauvoir disse "Ninguém nasce mulher, torna-se mulher", e esse
tornar não vem sem dor, na maioria das vezes. Eu não queria crescer. Não
queria ser mulher, ter que usar sutiã, ter que cumprimentar as pessoas com
beijinhos na bochecha, ter que "me cuidar", num sentido obrigatório e
não divertido como era passar uma sombra azul nos olhos e encher o cabelo de
trancinhas. Era esperado que eu fosse aquele ser misterioso. Aquele ser das
propagandas, da televisão, das revistas. Sempre bem arrumada, preocupada com a
casa, com filhos, supostamente frágil e dependente, que não expunha seus
desejos sem ser considerada uma libertina. Eu não era e nem queria ser nenhuma
dessas coisas. Na verdade, nessa época eu não queria muito além de brincar e,
ok, ter um namoradinho. Outro problema.
Se a sexualidade sempre tinha sido um mistério, o
amor romântico se apresentava na minha vida como algo essencial, quase
inerente. Afinal, desde pequenas, assistindo a todos aqueles filmes de
princesas e lendo livros de contos de fadas, nós, meninas, aprendemos que a
conduta da vida é mais ou menos a seguinte: você pode até sofrer, mas quando
tiver por volta de uns 20 anos, vai ser linda e participar de alguma grande
ocasião onde vestirá o maior e mais belo vestido do mundo, e depois disso você
casará com o príncipe dos seus sonhos, e viverá feliz para sempre. Para sempre.
Para sempre. Palavras repetidas em toda história. Existe um livro chamado
"Complexo de Cinderella", da Colette Dowling, explicando só sobre as
implicações desse mito no futuro das nossas vidas. Desde bem nova eu me lembro
de ser apaixonada por algum menino da escola. Normal, crianças mimetizam
adultos e aprendem assim, mas até que ponto isso era saudável?
Dos 11 aos quase 14 anos eu vivia romances platônicos, onde eu nunca fui apreciada e tinha certeza de que o problema estava comigo. Ah, as inseguranças da adolescência. Se eu soubesse o quanto eu mudaria, com certeza não teria me preocupado tanto. Ou não. Afinal, a cobrança não estava só nos meios de comunicação. Quem nunca ouviu um "se fosse mais magra / se fosse mais bonita / se não tivesse aparelho" de pessoas desavisadas por aí. E, o mais triste de tudo, quem nunca fez um comentário assim? É inevitável julgar os outros em pensamento, mesmo que só um pouquinho, todas essas ideias estão muito enraizadas em nossa mente. Mas acredito que seja possível reverter essa tendência que temos de expor nossos pensamentos preconceituosos, que não levam os sentimentos do outro em conta, e evitar o sofrimento alheio.
E o sofrimento alheio vem de tantas formas. Lembro-me
de quando a coordenadora entrou na nossa sala de aula para apresentar as novas
regras sobre o uso do uniforme, onde - exclusivamente das meninas - os shorts
não poderiam ser muito curtos e nem as calças muito justas, porque colégio não
era lugar para essas coisas. Lembro que eu saí para ir ao banheiro e no
corredor ela me parou, dizendo que da próxima vez eu seria barrada - segundo
ela meu short era muito curto. Nesse dia eu voltei para casa segurando as
lágrimas. Não era só um short que estava sendo proibido. Era eu, era minha
liberdade. Era minha escolha, e olha que naquela época eu ainda pensava sobre
mulheres como santas ou putas, e obviamente, eu não queria ser da segunda
categoria. Tinha escolhido usar um short que, na minha concepção, era normal,
adequado. E alguém, ainda mais sendo também uma mulher, tinha me negado. Tinha
me dito inferior. Tinha me dito justamente aquilo que eu mais temia ser: uma
vadia. Alguém que não valorizava o tal diamante que era seu corpo. E no momento
em que eu tinha concepções sobre o que significava ser vadia, essas concepções
também existiam para outras pessoas. E para elas, onde eu era essa outra, eu é
que era a vadia, como nesse excelente post.
Não sei se alguém passa tranquilo pela
adolescência, sei que a minha foi um tanto turbulenta, agravada por problemas
externos a esses de mudanças físicas e hormonais. De qualquer forma, para as
meninas, além das idealizadas expectativas de serem sempre como as modelos e
atrizes, ou de um dia aparentarem com a menina mais bonita, ou pelo menos
aquela que os meninos chamavam de gostosa na sala, havia o temor das famosas
conotações do parágrafo acima: não fazer nada e ser chamada de chata,
conservadora, ou se dar liberdade e ser conhecida como a puta, a despudorada.
Nenhuma das duas tinha valor perante os olhos dos meninos. As primeiras eram
intocáveis e enjoativas, as segundas serviam, no máximo, para uma noite na
matinê e depois inventar boatos entre amigos. Mas como que se atingia esse
estado do meio? E mais, por que que a única coisa que importava pra gente era
como os garotos nos percebiam?
Mais um problema da sociedade machista. Ainda somos
ensinadas a medir nosso valor de acordo com o quanto somos apreciadas. E para
ser apreciada na nossa sociedade, bem, existem essas normas muito esquisitas a
serem seguidas. Desde essa época aí em que eu estou discorrendo, tinha dúvidas
muito curiosas sobre como as coisas funcionavam. Pelo que eu entendia, não era
ok você fazer pegação com os coleguinhas, mas se você tivesse namorado, estava
permitido fazer o que quisesse com ele. Não era ok admitir que você gostava de
fazer pegação, mas se você tivesse um namorado, de novo, não tinha problema
nenhum. Não era ok ficar com vários, mas mesmo sendo julgada, a garota com esse
comportamento continuava ficando com muitos outros. Se não era legal, então por
que continuavam ficando com ela? Não era ok ser amiga dessas garotas, porque
como diziam elas iriam roubar seu pretendente por serem tão bonitas, mas mesmo
assim elas tinham sempre amigas ao redor. Se você ficava com um garoto, te
julgavam. Se você não ficava com um garoto, também te julgavam. Como assim dar
um fora em alguém que te deseja, mesmo que não seja recíproco?
Esses pensamentos, aliados à todos os outros sobre
"tenho que ser gostosa", "tenho que ser desejável",
"tenho que ser comportada", "tenho que ter um cabelo liso, uma
pele perfeita, nenhuma celulite" rondaram quase toda a minha adolescência
como fantasmas negros, por trás de quase todas as minhas escolhas, do que quer
que fosse. Eu não me considero uma pessoa que se importava muito com isso,
incontáveis vezes eu fui a puta, a vadia, a mal vestida, ou o que quer que
fosse. Mas eu nunca deixava de me cobrar. Nunca deixava de me culpar.
Felizmente, com o passar do tempo, eu percebi que essas coisas não me definiam.
Que eu não precisava ser tudo o que diziam - eu nunca tinha sido, ninguém que
eu conhecia era, apesar de esforços muito maiores do que os meus. E a habitual
revolta com as conformações da sociedade por vezes saiu do equilíbrio, no outro
extremo, me jogando contra minhas emoções e sentimentos. A culpa foi sempre uma
ferida aberta, que ainda hoje às vezes custa a fechar. Mas aos poucos vai se
curando.
Uma grande ajuda eu consegui quando descobri o
feminismo. Meu inconformismo com essas situações encontrava respostas e amparo.
Finalmente eu tinha descoberto uma explicação para tudo que eu não entendia
quando era mais nova. Finalmente eu entendia o fato de quererem controlar todas
as minhas decisões. Finalmente eu entendia por que que homens podiam fazer
certas coisas e diziam que mulheres não. Finalmente eu entendia as manobras da
mídia para que eu me sentisse mal com meu corpo, minha aparência, minha
personalidade. Finalmente eu desenvolvi uma voz. Finalmente eu me libertei.
Ontem, com a péssima posse do pastor Marco
Feliciano na Comissão de Direitos Humanos, eu refleti, abalada e me sentindo
impotente. E lembrei que hoje era o Dia Internacional da Mulher. Mas espera aí,
por que que mulher tem um dia só para ela, mesmo? Mais de cinquenta anos após a
publicação de O Segundo Sexo, só pode ser porque a mulher continua sendo O
Outro. Triste.
Nesse dia, costumam atribuir às mulheres todos
aqueles clichês de seres mais belos do mundo (como se fossem feitas só para
serem olhadas), de seres que carregam o milagre da vida (como se fossem parte
única disso e como se fosse algo obrigatório), de seres frágeis e emocionais
(como se servissem só para sonhar acordadas enquanto lavam o chão do banheiro,
mesmo), de como um salto alto lhes confere poder (limitação dos movimentos é
poder?). Mas da minha experiência nenhum desses itens me define como mulher.
Nenhum deles nunca me fez ou deixou de me fazer mulher. E eu nunca me senti
especial, pra melhor ou pior, por causa dele. E bom, sobre os saltos altos, eu
acho que nunca me senti com menos poder sobre meus passos do que em cima de um.
Mas isso é só minha visão sobre o tema. Claro que
outras mulheres podem se sentir empoderadas por isso. Mas não é só isso. Nunca
vai ser só isso. Esse dia não existe para agradecer ou glorificar traços
impostos sobre o que é feminilidade; Esse dia existe para lutar. Para conscientizar
sobre os problemas. Para pensar sobre por que, mesmo sendo maioria em números,
as mulheres ainda são minoria diante da sociedade, tendo seus direitos
limitados, sua imagem explorada e sua igualdade posta de lado.
Poder eu senti quando eu aprendi a falar a verdade.
A não aceitar de cabeça baixa tudo que me era imposto. A expor meus desejos e
sentimentos. Saber que mesmo nos momentos de vergonha, nos momentos em que eu
não me aceito e não aceito @s outr@s, eu posso me acolher, tirar a culpa dos
meus ombros e recomeçar, com a esperança de que meus atos tornem minha vida e a
vida de quem me rodeia mais agradável. Mais doce.
Mulheres não são mistério, não são estereótipo, não
são santas, não são putas. São humanas. E tudo que elas pedem é respeito e
igualdade.
AMIGA NEM LI TO COM PRESSA PARABENS PRA GENTE, EH BOM EU RECEBER DIAMANTES OS MELHORES AMIGOS DE UMA MULHER HOJE A NOITE OU VOU ESTOURAR O CARTAO DE CREDITO AMANHA SE NAO BATER O CARRO NO CAMINHO JAH Q SOU UM PERIGO CONSTANTE NO VOLANTE KKKKKKKKK
ResponderExcluirAFF ESSAS MULHERES FEMINAZIS QUEIMADORAS DE SUTIA FAZEM EU PAGAR MICO DE RECEBER FLOR AFFFFFF AMIGA UM BEIJO VAMOS MARCAR ALGO ME LIGA BJO AMIGA NO ROSTO NAO SOU LESBICA NE HHAHAHA RS TE AMO LINDA
cai fora, mascu.
Excluiruheauehauehuaehaue é brinks, tassinha é ma best friend ;B
Excluirdesculpa a confusão, ficou meio esquisito pra quem vê de fora mesmo hahaha
ExcluirAdorei o seu texto. Confesso que meus olhos começaram a lacrimejar, porque eu me vi ali. Descobri o feminismo na adolescência, como você. Sinto que me LIBERTEI. Porém, não estou livre, não?
ResponderExcluirQue possamos juntar cada dia mais mulheres e homens nessa luta.
euingrata.tumblr.com
own, obrigada <3
ExcluirAcidgirl disse que tudo é diferente entre homens e mulheres.São VONTADES, DESEJOS, FUNÇÕES, TIPO FÍSICO diferentes, inclusive os INTERESSES. Ñ tem pq você ter direitos iguais.Certas coisas são do papel masculino e outras do papel feminino"
ResponderExcluirMuitas pessoas que vêem seus interesses não se encaixando nessas normas, sofrem. Mas é preciso um grande exercício de empatia para poder perceber.O grande papel do feminismo moderno é dizer que existe, sim, um pensamento diferente, e q mudar de comportamento não é + necessário
é diferenre devido às construções sociais e divisões de papéis. afeta até o tipo físico ou atribuir fraqueza a mulher não seria comum se desde criança nos tentam impor passividade e bonecas, em vez de ações e carrinhos, por exemplo.
Excluirou seja, a acid girl devia parar de falar tanta besteira.
diferente* / nao nos tentassem impor*
Excluirsinceramente, viu.
ExcluirEste comentário foi removido por um administrador do blog.
ResponderExcluirquero casar com esse texto, me identifiquei demais com ele :)
ResponderExcluirpoxa, muito obrigada! hahaha fico até boba.
ExcluirMe identifiquei bastante com várias partes do seu relato e também descobri o feminismo adolescente. Achei lindo demais!
ResponderExcluir*---*
muito obrigada :D
ExcluirEsse texto é incrível! Tenho 13 anos e sofri com essas coisas também, mas o feminismo me ajudou, haha XD
ResponderExcluirEnfim, é muito triste ver que nossa sociedade pensa da mesma forma que pensava no século XIX sobre as mulheres, mudaram alguns detalhes apenas :/
Já sofri com muitos problemas de auto estima por conta disso e até já achei que eu era vadia por gostar de decotes e etc..
Porém, nunca entendi porque temos que usar sutiã ou porque as pessoas veem peitos como um tabu e nunca entendi porque toda mulher não é nada sem um vestido, salto alto e maquiagem...
O pior é que eu evito o uso de roupas curtas por medo de ser estuprada ou violentada..chato, né?
Aiai, um dia muda, eu espero. Quando eu crescer, espero que não exista mais machismo, racismo e homofobia.
Bjs e parabéns pelo seu texto, muito bonito e ele mostra o que uma menina passa :/