16 de maio de 2013

Wild



"Wild", da Cheryl Strayed, é um livro sobre caminhar.

A autora, aos vinte e seis anos, depois da morte da mãe por um câncer fulminante, o afastamento do que ela conhecia como família e a destruição que ela mesma infligiu ao seu primeiro casamento, entre outros problemas, decide trilhar a Pacific Crest Trail (PCT). Assim. Quase do nada. Quase sem experiência nenhuma. Sozinha por uma trilha de 1.770 km, passando pela California, Oregon e Washington.

Não somos diretamente apresentados aos motivos. Começamos com a caminhada. Aos poucos, vamos sendo apresentados às lembranças da família, da ausência do pai, da presença da mãe, da morte. Da primeira vez em que ela viu o Guia sobre a PCT. E do dia seguinte em que voltou à loja para imediatamente comprá-lo, quase como um chamado. Dos meses de planejamento até que a viagem finalmente se concretizasse. E ela se concretiza, por mais impossível e inacreditável que pareça. A trilha está lá, pronta para ser começada, da mesma maneira que se atravessa uma rua ou se sobe e desce de elevador.

Mas estar no mundo selvagem não é como subir e descer de elevador. 

Há o peso a dor os pés o sol o sol escaldante os animais selvagens e o medo de estar sendo observada há as subidas e descidas e a neve e o atalho e a trilha que se perde e dar voltas e ter que queimar livros e jogar fora coisas e uma infinidade de objetos perdidos (incluindo as botas) há a invenção para sobrevivência a esperteza a visão e as paisagens deslumbrantes também as noites frias a chuva e os pés os pés sempre doendo os calos nos quadris o cheiro de suor a sensação de não estar limpa e não poder se apoiar na sua beleza e o medo do que poderia acontecer com uma garota sozinha em uma trilha quase deserta por mais de três meses e para isso apenas a repetição "eu não estou com medo" o tempo e o caminhar. Caminhar. Um pé depois do outro. Mesmo quando não havia mais como, continuar. Continuar.

"The thing about hiking the Pacific Crest Trail, the thing that was so profound to me that summer—and yet also, like most things, so very simple—was how few choices I had and how often I had to do the thing I least wanted to do. How there was no escape or denial. No numbing it down with a martini or covering it up with a roll in the hay. As I clung to the chaparral that day, attempting to patch up my bleeding finger, terrified by every sound that the bull was coming back, I considered my options. There were only two and they were essentially the same. I could go back in the direction I had come from, or I could go forward in the direction I intended to go."

E o que poderia parecer mais incrível: há a gentileza de estranhos. Das incontáveis caronas até os amigos que ela faz na trilha, Cheryl encontrou gentileza. Encontrou amizade. Encontrou ajuda que talvez sem a qual não teria sobrevivido, e não os habituais assassinos, ladrões e estupradores que imaginaríamos. Pode ter sido sorte. Ou podemos ver como uma lição muito maior.

Lendo, a primeira coisa que eu pensei foi "como uma garota tem a coragem de sair sozinha numa trilha? De pedir carona? De dormir no meio da floresta? E a quantidade de coisas que podem acontecer com ela, mesmo se ela fosse um homem". E ela posteriormente explica que pensou as mesmas coisas. Mas que decidiu não se contar essa  história. Reconheceu que havia a possibilidade, mas que ela deveria enfrentar, senão nunca faria a trilha. A cada situação de possível perigo, a única coisa que restava ser feita era dizer "eu não estou com medo, eu não estou com medo, eu não estou com medo". E o medo eventualmente cederia.

"Fear, to a great extent, is born of a story we tell ourselves, and so I chose to tell myself a different story from the one women are told."

Essa passagem me fez lembrar da palestra da Chimamanda Adichie no TED, sobre a mesma coisa, só que com um contexto diferente. Ela é uma escritora nigeriana que, ao se mudar para os Estados Unidos, percebeu como o estereótipo de sua cultura era forte a ponto dela encontrar pessoas que não acreditavam que na Nigéria existiam famílias como as americanas ou que ela conhecia Mariah Carey. As pessoas só conheciam uma única história sobre o continente africano. Em outra ocasião, numa viagem, ela percebe que também não estava livre dessas chamadas "narrativas únicas", julgando mexicanos a partir da única face que conhecia deles, a de imigrantes em notícias dos jornais e televisões. A importância de múltiplas narrativas é incontestável.


É isso que a história da Cheryl é. Uma outra narrativa. Uma outra visão para aquilo que a gente acredita como a única solução possível. Uma jovem órfã, divorciada, que passa por um período usando heroína e trabalha como garçonete, decide fazer uma trilha sozinha. Tudo parece gritar "ERRADO". E no fim, nada é errado. Nada está errado.

"What if yes was the right answer instead of no? What if what made me do all those things everyone thought I shouldn't have done was what also had got me here? What if I was never redeemed? What if I already was?"

O que parece aterrorizante quando ouvimos sobre as histórias da trilha, como encontros com cascavéis, ursos e pessoas estranhas, na realidade se mostra bem menos perigoso ou problemático do que as histórias que Cheryl conta da sua vida antes da PCT.

Ao estar na trilha, exposta a tudo e instintivamente obrigada a sobreviver, os perigos tornam-se secundários. A dor emocional fica em segundo plano perto da dor física do momento. Não dava para se esconder atrás de nada, ou não enfrentar por não saber como o faria. Os problemas que ela tanto achava que ia refletir, percebem-se esquecidos durante muito tempo. Quando ela achou que não aguentava mais nada, ela continuou. Um pé depois do outro.

"The one for whom behind every hot pair of boots or sexy little skirt or flourish of the hair there was a trapdoor that led to the least true version of me. Now there was only one version. On the PCT I had no choice but to inhabit it entirely, to show my grubby face to the whole wide world."

Esse livro, para mim, foi como uma trilha. A cada página um novo passo, uma nova visão. Depois do final, as coisas continuam as mesmas, mas totalmente diferentes. Como aquelas mudanças que não assimilamos de uma hora pra outra, porque mudanças não acontecem assim, na realidade. Mudanças são processos, mesmo que não possamos traçar todos os eventos que as levaram a acontecer.

Cheryl me ensina o que é realmente ser corajosa. Reafirma que não são as coisas que você pensa que serão determinantes nas suas mudanças. Que há voz, história e cura mesmo para quem parece perdido e sem solução. Ela me ensina a não pedir desculpas pela minha história, e a acreditar mais em mim. Acreditar que eu também tenho outras narrativas e possibilidades. 

Eu me limito tanto, mas essa caminhada me faz tentar um pouco mais. Deixar ser um pouco mais.

To believe that I didn't need to reach with my bare hands anymore. To know that seeing the fish beneath the surface of the water was enough. That it was everything. It was my life - like all lives, mysterious and irrevocable and sacred. So very close, so very present, so very belonging to me.
How wild it was, to let it be.” 

Obrigada, Cheryl.


Créditos: livrofoto.

2 comentários:

  1. que legal esse, tassinha *_*
    mais um pra lista.
    tipo, fiquei pensando em into the wild, q conta a história de um homem e q no fim das contas morre pq se descuidou. tb nao aconteceu nada sanguinolento com ele :~
    mto bom, mto bom. o video do ted vou ver tb. lembro da minha reação qdo falei com aquela menina do marrocos. tipo, como assim ela era parecida comigo e fazia faculdade e era vegetariana? :O
    antropocentrismo involuntário

    :****

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    1. sim, também lembrei muito de into the wild. ia até colocar mas não consegui encaixar muito bem com o resto do texto, mas era algo nas linhas dele também ter feito isso mas muito impulsivamente e com o intuito de se isolar, tipo, ele simplesmente cagou pro resto das pessoas e acreditou que assim ele seria mais feliz.
      não que ele não tenha sido, mas né, "happiness only real when shared" diz muita coisa.

      e veja o vídeo, ou leia a transcrição do texto, no site do ted dá pra ver xB

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